quinta-feira, 27 de maio de 2010

Sobre a(s) Água(s).


Três Águas.

"Anteontem de manhã fui à praia e começou a chover quando eu estava tão perto do mar como do meu carro. Nem sequer pensei em voltar. Fugi da chuva para dentro do mar. O mar estava calmo e aristocrático, tratando as gotas de chuva como queixas do proletariado.
Pensei que tinha sido apanhado. Mas é um defeito do pensamento. Água é água e mergulharmos e nadarmos nela é melhor do que fugir dela ou apanhar com gotas dela. É como o ar e o vento: só conta o oxigénio. E a frescura. O vento é ar novo. O mar é água-sangue. A diferença entre a salgada e a doce é, biológica e gastronomicamente falando, absurda.
Nunca tinha ido ao mar quando estava vento e frio e chuva e nuvens negras como o azedume. Mas era Maio. E Maio é um mês de mar. E eu fui. O mar tapou-me, tão cinzento como o céu. Abraçou-me no frio dele. As gotas de chuva eram quentes; rebuçados. O mar era uma gabardine; a minha protecção. Fartei-me de nadar, com medo que tivesse frio quando saísse. Não tive. Ficou tudo molhado. A minha toalha; as minhas sandálias; a areia.
Cheguei a casa e tomei um duche e, enquanto tomava, comparei as três águas que me lavaram. A água do mar foi a mais doce e deliciosa. A água do céu foi a segunda. E, muito longe das outras duas, a água do banho, quentinha e fumegante, foi a menos boa. Mas boa. Mas mais boa por causa da anteriores e melhores. Mar; chuva e água canalizada. É uma grande sequência. A partir de agora, passo a lavar-me com a chuva do céu."


Miguel Esteves Cardoso, Público 15/05/2010.


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