terça-feira, 31 de março de 2009

The Disappearing Face of New York.



"The Disappearing Face of New York is a visual guide to New York City’s timeworn storefronts, a collection of powerful images that capture the neighborhood spirit, familiarity, comfort and warmth that these shops once embodied."

Anders Krisar's Chords 1-3.





Photos: Anders Krisar, Chords 1, 2, 3.

sábado, 28 de março de 2009

Creativity Issues.


“If the history of innovation has taught us anything at all it’s that two guys in a garage will beat a large corporation to a good ideia ninety-nine times out of a hundred.”

Gordon Torr.

sexta-feira, 27 de março de 2009

Shibakouen Hamutaro.






Constato que, naturalmente, os posts em Inglês contribuem para o acréscimo do tempo médio de visita. 

Entretanto, enquanto investigava o trabalho de alguns fotógrafos japoneses encontrei aqui o trabalho de Shibakouen Hamutaro, que anda à volta de espaços abandonados - são edifícios de habitação, fábricas, hóteis, parques de diversão, etc. Podemos perder (ou ganhar) horas por aquelas bandas.

Os Cinemas de Sugimoto.






Photos: Hiroshi Sugimoto

quarta-feira, 25 de março de 2009

The Blue Mosque.



Photo: JMA (Film, 35mm)

Visionaries.



Mrs. Eva Zeisel 

Hora de Verão.



Tchekhov disse uma vez que “quando as pessoas são felizes, não reparam se é inverno ou verão”. Eu reparei que começou a primavera, e isso porque, com ela, e a partir do próximo domingo, ganhamos uma hora de luz, que até Junho se desdobra em duas.
Para mim esta hora é autêntica panaceia, e sei que também traz felicidade a muita gente.
Acho que somos um povo com dupla personalidade, que alterna com a mudança de hora, e que tem os seus picos de bipolaridade no dia 21 de Dezembro e no dia 21 de Junho.
Quando penso num dia 21 de Dezembro às sete da tarde, imagino-me a sair do trabalho, noite cerrada, frio, chuva intensa, camisola, casaco, cachecol, chapéu e botas. Há um ruído intenso, que é um mix entre as canções de natal vindas de altifalantes de rua foleiros e o som das buzinas dos carros. Ao volante, contribuo para um trânsito infernal, que é intensificado por um autocarro que, todos os dias 21 de Dezembro, avaria na parte mais complicada da cidade, e por todos aqueles que, como formigas, se dirigem para tudo quanto é centro comercial, para fazerem as últimas compras de Natal. Chegado a casa, é brincar um bocado com as crianças, deitá-las e, enquanto preparo o jantar com a minha mulher, abrir uma garrafa de vinho e conversar sobre o dia que tivemos, que acaba por ser grande parte dele noite. Ao serão um filme, ou dez ou quinze páginas de um livro que, passados dez ou quinze minutos, nos levam para parte incerta da consciência, o que me obriga a retroceder mais ou menos página e meia, na vez seguinte que lhe pego. Por outro lado, às sete da tarde de um dia 21 de Junho, imagino-me a sair do escritório, em mangas de camisa, e sentir que o ar está mais quente na rua do que na sala onde passei o dia. O sol está ainda alto. Ouço o som de um piano mal tocado vindo de uma janela aberta num terceiro andar de um prédio antigo, e há turistas avermelhados por todo o lado. No carro há um cheiro intenso a parafina derretida vindo da prancha que será, em poucos minutos, instrumento de exorcismo de todos e quaisquer problemas acumulados durante o dia. Chego à praia e, dentro de água, encontro aqueles que, todos os dias 21 de Junho, ali partilham umas ondas de verão. Passa uma hora e meia e ainda é dia. É o maior dia do ano. A minha mulher chegou entretanto, e os meus filhos brincam na areia com o cão, que é cadela. Ficamos uns minutos a ver as luzes que, uma a uma, se acendem na cidade. Troco o fato de surf por uns calções e uma t-shirt, e vamos comer uma sardinhas a um restaurante perto da lota que está com as mesas na rua. Em casa, com as janelas escancaradas para a rua, ouço um bom disco ao mesmo tempo que acabo com a garrafa de vinho que sobrou do jantar do dia anterior.
Ah, bendita “hora de verão” que a primavera nos traz.

JMA.

Photo: Trent Parke & Narelle Autio

sexta-feira, 20 de março de 2009

L'acquila pescatrice.


O som tem mais influência no apelo à estética do que à priori podemos supor. Há uns tempos entrei na cozinha de casa dos meus pais para encontrar uma rapariga relativamente rechonchuda, que eu nunca vira até então, a beber um copo de leite. Quando lhe apareci de repente não se atrapalhou por não me conhecer e, com uns bigodes brancos, soltou um alegre “Buon Giorno!”. “Bom dia”, disse-lhe eu, ao mesmo tempo que tentava descortinar a origem de tão alegre criatura. Qualquer coisa como “Sono amica di João” (e o João é um dos meus irmãos) esclareceu-me até certo ponto. Vim a saber mais tarde naquele dia que se tratava de uma das suas paixonetas que, neste caso, estava associada à fonética. Passo a explicar: No dia em que o meu irmão conheceu a rapariga ela contou-lhe uma história sobre uma espécie de águia, a águia-pescadora ou Pandion Haliaetus, conhecida lá para as bandas de onde ela vinha como “L’aquila pescatrice”. Foi exactamente pela maneira como ela dizia “L’aquila pescatrice” que ele se apaixonou. A língua italiana tem este encanto. Conhecendo o meu irmão como conheço, não o imagino a olhar duas vezes para uma bonita portuguesa com sotaque de Guimarães, por muito erudita em espécies em extinção que ela fosse, simplesmente pela forma como diria águia-pescadora. Poderia encontrar outras razões, mas não essas. Noutra perspectiva, que não se prende tanto com a fonética mas mais com o som propriamente dito, há no nosso dia-a-dia uma série de sentimentos que são enlevados ou retraídos pela música, pelos sons da natureza, etc. Durante um período de tempo em que dei aulas, gostava de fazer um exercício com os meus alunos. Colocava num auditório semi-obscuro um excerto de um filme com cerca de 10 minutos e uma cena visualmente neutra em termos emocionais, com a “minha” banda sonora adaptada que ia alternando. Umas vezes o Adiagietto da 5ª Sinfonia de Mahler, o do Karajan com a Filarmónica de Berlim, outras vezes um registo intermédio, como o Summertime de Gershwin, pelo Ray Brown Trio com Gene Harris ao piano, ou, noutro extremo, músicas de bandas como os Siouxsie and the Banshees, Rage Against the Machine, The Strokes, entre outros. Pedia-lhes então que escrevessem sobre aquilo que sentiam em função das imagens e da música. Com aquele exercício não queria provar absolutamente nada para além da influência óbvia que o som tem na narrativa e no pathos, mas os sentimentos descritos foram sempre absolutamente surpreendentes, por aquilo que representavam em relação a cada pessoa. Se eu, naquele dia em casa dos meus pais, tivesse ouvido da boca daquela rapariga um “Oi!”, um “Good morning!”, ou um “Bonjour!”, o efeito teria sido certamente diferente daquele que me provocou o “Buon Giorno!”, assim como teria sido diferente a imagem que eu reteria da míúda com bigodes de leite, até porque também são totalmente diferentes uns bigodes de leite de uma brasileira, de uma inglesa ou de uma francesa. Mas isso é outra conversa. Em relação à fonética, queria apenas acrescentar que tenho visto marcas portuguesas com pretensões de internacionalização com nomes simplesmente indizíveis noutras línguas, e que esse facto pode, por si só, ter um peso considerável no entendimento ou na aproximação do público a um determinado produto. Há “palavras” que usamos que representam apenas “sons” estranhos noutras línguas, e que, no limite, querem dizer outras coisas. Também o som, num spot de televisão, mas também, por exemplo, num restaurante, pode ser determinante na experiência que temos, ainda que por vezes o seja de uma forma subliminar. Não é raro não nos apercebermos de um ruído que nos incomoda, até ao momento em que ele deixa de existir.

JMA
Publicado em 2008 no Semanário Económico.

Mó de Baixo.


The Real Life.



Gosto de te ver nos filmes Scarlett, mas à paisana não.

quarta-feira, 18 de março de 2009

Drinking Issues.



"I drink to make other people interesting."
George Jean Nathan, American Editor and Drama Critic.

H.L. Mencken and George Jean Nathan coedited the magazine The Smart Set, before going on to start their own magazine, The American Mercury, in 1924. Here, they pose for Ben Pinchot in the January 1929 Vanity Fair.

Keep Calm and Carry On.



A história do poster que deu origem ao Post que fiz no dia 27 de Outubro de 2008 está aqui .

segunda-feira, 16 de março de 2009

1980.



Madonna meets the Press.
Photo: Brad Elterman.

Get a Life!


A ideia de “work/life balance”, tão em voga noutros países, essencialmente nos do norte da Europa, está ainda num estado embrionário em Portugal. Salvo raras excepções, encontramo-nos no ponto em que se considera competente quem sai às oito ou nove da noite do trabalho, e incompetente ou preguiçoso quem se organiza para sair a horas e ter vida própria. Por outro lado, as grandes empresas continuam a confundir os “benefits” que atribuem aos seus colaboradores, como os carros, telemóveis, laptops, seguro de saúde, mensalidade no ginásio, entre outros, com a qualidade de vida, maior ou menor, que lhes proporcionam. Naturalmente que há benefícios em trabalhar em empresas que premeiam de forma justa a competência, e promovem a progressão de carreira, mas também não deixa de ser verdade que, muitas vezes, os “benefits” são “areia para os olhos”, representando extensões dos locais de trabalho, que fazem com que os colaboradores se sintam obrigados a estar disponíveis a horas em que é suposto estar com a família, com os amigos, ou simplesmente a descansar. Os “benefits” nem sempre trazem benefício.
Nunca houve tanto show-off e, a certa altura, “sabe-se o preço de tudo mas não se sabe o valor de nada”.
Millôr Fernandes disse uma vez: “Pode ser difícil encontrar agulha em palheiro, mas não descalço”. Todos sabemos que nem sempre é fácil encontrar o emprego ideal, mas se nos “descalçarmos”, (e digo isto essencialmente para aqueles que andam à procura do primeiro emprego) - e descalçarmo-nos pode, até certo ponto, significar arriscar áreas que nos digam alguma coisa e que tenham a ver com o nosso perfil em detrimento de alguns dos tais “benefits” que às vezes nos iludem durante anos - teremos certamente uma maior probabilidade de ter sucesso na profissão que escolhemos.
Vejo também que há uma obsessão desmesurada com o academismo. As pessoas saem das universidades e continuam automaticamente o ciclo de aprendizagem nos mestrados, doutoramentos, etc., o que faz com que tenham uma perspectiva teórica do mundo do trabalho, por um lado, e uma enorme falta de noção em relação ao modo de aplicar os conhecimentos adquiridos por outro, e dentro deste grupo encontram-se alguns professores universitários. Mais importante do que decorarmos supostas técnicas ou fórmulas mágicas é sabermos interpretar realidades específicas e em constante mutação, e ter instinto para reagir, antecipando problemas e soluções. É um processo que se prende mais com a cultura do que com qualquer outra coisa. Obviamente que não pretendo anular o valor intelectual e o empenho que estão inerentes a um mestrado ou um doutoramento, quando feitos a seu tempo e com uma aplicabilidade concreta, mas sim dizer que acho que não vale a pena fazer-se, um ou outro, exclusivamente para se “puxar pelos galões” numa entrevista de trabalho. Falta “mundo” a uma grande parte dos nossos profissionais, e quando digo “mundo” não é propriamente o mundo que encontramos numa viagem, por melhor que esta seja - até porque, hoje em dia, até as viagens são “de pacote”, oferecendo às pessoas amostras tipo “conserva” de diferentes recantos do mundo, sem grandes margens para o lado romântico da descoberta – mas, essencialmente, falta-lhes ler muito, conhecer pessoas novas, andar a pé pela cidade em que vivem, ver filmes antigos, ouvir música para além daquela que está nos postos de escuta da Fnac, saber como improvisar um receita nova e, a muitos, arriscar mudar de emprego.

JMA

Publicado em 2008 no Semanário Económico.

quinta-feira, 12 de março de 2009

Pathos.



pathos noun
a quality that evokes pity or sadness : the actor injects his customary humor and pathos into the role.
ORIGIN mid 17th cent.: from Greek pathos ‘suffering’ ; related to paskhein ‘suffer’ and penthos ‘grief.’

Photo: Ralph Gibson (Again).

sexta-feira, 6 de março de 2009

Suzipaula.




Não há como o galão da Suzipaula, ali ao lado do cemitério "Prado do Repouso". Bastam 3 minutos a olhar para aquele Neon num dia de chuva para nos sentirmos em Miami. Sai-se de lá com a alma lavada. 

Monsieur Kacimi Mohamed.



terça-feira, 3 de março de 2009

The Very Poor and The Very Rich.



The Clash by Pennie Smith.



New York Palladium, September 21st, 1979.
"I remember thinking something was wrong, realising Paul was going to crack - and waited. The shot is out of focus because I ducked - he was closer than it looks" - Pennie Smith.

segunda-feira, 2 de março de 2009

Boipéba (BA)



Antes de viajar para o Brasil fui a casa de um amigo meu que viveu lá muitos anos, para recolher algumas informações. A certa altura, ele pegou numa fotografia onde se via uma praia com um pequeno conjunto de cabanas de madeira com telhado de colmo - “Tirei esta fotografia por causa deste número de telefone, uma vez que estava a passar ali perto de barco. É uma ilha no sul da Bahia; chama-se Boipéba”, disse ele. De facto, se olhássemos com atenção, podíamos ver uma placa onde se lia “Vila Sereia”, com um número de telefone por baixo, que anotei num papel.
Passadas duas ou três semanas estava em Itacaré, que fica alguns quilómetros a sul de Boipéba, e, antes de prosseguir viagem, liguei para o tal número para ver se conseguia fazer uma reserva para uns dias. Do outro lado atendeu-me uma senhora que me disse que lamentava mas que não tinha disponibilidade para essas datas; que só tinha quatro cabanas, e que o melhor seria ficarmos uma primeira noite no Morro de São Paulo, que é a ilha a Norte que fica a três horas de viagem, e depois dirigir-me lá no dia seguinte, que podia ser que ela me arranjasse qualquer coisa. Assim foi.
O Morro de São Paulo só não me desiludiu porque já ia preparado para o que ia encontrar. Depois de ter passado as três semanas anteriores em lugares praticamente virgens, longe de turistas e de tudo aquilo a que chamamos “rebuliço”, vi-me rodeado de uma confusão total e absoluta - berimbau com batida techno, vendedores de tudo e mais alguma coisa, do côco à coca, passando pelas cangas, colares, pulseiras, DVD’s pirata, etc., numa prova viva e efervescente de que não há mesmo paraíso que resista à acção devastadora dos números por trás do turismo e daquilo a que chamamos Civilização.
No dia seguinte, passava pouco das sete da manhã quando nos sentamos no tractor que nos ia levar a Boipéba. No fim do percurso que era possível fazer por terra, apanhamos boleia de um barco de pescadores que atravessou um pequeno rio e nos deixou no nosso destino.
Foi quase imediatamente que identificámos a placa da fotografia com o “nosso” número. Como não vimos ninguém, levantamos a cancela de madeira que separava a praia do jardim e entrámos. Não passou muito tempo até vir ter connosco um senhor de uma certa idade a quem explicamos porque e como ali tínhamos ido parar. Era o jardineiro e disse-nos que achava muito estranho a Dona Chris ter-nos dito que não havia cabanas livres, porque há mais de uma semana que não havia hóspedes na Vila Sereia. Levou-nos então até à porta de uma cabana que era maior do que as outras, e pediu-nos que esperássemos.
Foi sem grande alarido e com um ar sério que a Dona Chris nos veio receber. Entre outras coisas disse-nos que era publicitária em São Paulo, mas que se fartara daquela vida; desistira de ser rica, e instalara-se ali. Depois de conversarmos alguns minutos, disse que tinha muito gosto em que ficássemos lá, explicando-nos que, quando as pessoas lhe ligavam e não as conhecia, dizia que não havia vagas. Prezava muito o seu espaço e gostava de ver a cara das pessoas antes de as instalar numa das cabanas do seu jardim. Antes de nos deixar disse-nos para, na manhã seguinte, quando acordássemos e quiséssemos comer, abrirmos a portada da janela do nosso quarto que, passado um bocado, alguém nos levaria o “café-da-manhã”.

Não passaram mais de vinte minutos desde o momento em que abrimos a portada do nosso quarto até aparecerem na nossa varanda duas baianas com um grande cesto que pousaram em cima de uma cadeira. Lá de dentro foram tirando pão, queijo, doce, fruta, sumos naturais, e um bolo acabado de fazer que, dispostos em cima da mesa, formavam um belo quadro de cores vivas. O tempo estagnara ali para nós.
Com o passar dos dias fomos deixando para trás todas as preocupações, necessidades, complexos e vícios citadinos, até atingirmos um estado de alma que remetia para as palavras de Calazans Neto sobre a passagem de Vinícius de Moraes pela Bahia – “Não queríamos mudar nada. Queríamos aceitar a vida como ela era: gostosa, morna, engraçada. (...) Era do nascer do sol ao morrer do sol, às vezes sem fazer absolutamente nada. Chega um tempo em que você descobre que o bom é não fazer nada. É ver o dia passar. No dia que você consegue como nós conseguimos, eu e Vinícius, conversando sobre amenidades, ver o dia passar, da manhã até o sol se por, é quando você realmente está tranquilo, onde você não é neurótico, onde as coisas estão muito mais presas no seu íntimo.”
Era então assim, sem querermos mudar nada, que todos os dias andávamos cerca de quarenta minutos por pequenos trilhos até à Praia da Coeira onde, desde muito cedo, o Guido, um homem de cinquenta e tal anos, apanhava lenha para fazer a fogueira onde cozia as lagostas que servia a quem ali passava, por 10 R$ a dose.
Há mais de 18 anos que o Guido ocupava diariamente a mesma amendoeira, onde amarrava uns pequenos bancos de madeira e o seu burro. Mais do que conversador, este homem era um verdadeiro contador de histórias, mas de histórias absolutamente mirabolantes, de bolas de fogo que à noite rasgavam os céus investindo contra os pescadores nos seus barcos; de santos de madeira que desapareciam de uma igreja para, passados alguns dias, irem aparecer noutra; de pais-de-santo, mães-de-santo, orixás e magia negra que, por inverosímeis que nos parecessem, realçavam a aura do lugar.
Um dia, o senhor Guido veio ter comigo e disse: “Zé, quer vir em minha casa hoje à noite?”. “Vou Guido, onde é?”, disse eu. “Você sobe o morro lá junto de Boipéba velha, e pergunta onde fica a minha casa, que todo o mundo sabe. Vá lá, conhecer a minha mulher e os meus filhos”.
Confesso que, naquela noite, depois de um dia de praia e de um jantar como aquele que acabara de ter, tudo o que me apetecia era fazer como o santo de madeira das histórias do Guido e, num estalar de dedos, desaparecer do restaurante onde estávamos e voltar a aparecer na minha cama, mas lá nos resolvemos a subir o morro e a ir procurar a casa do nosso amigo.

Quando o Guido nos abriu a porta de sua casa tínhamos, em formação quase militar, toda a sua família à nossa espera. Imediatamente percebemos que, se nos tivéssemos rendido à preguiça pós-jantar, teríamos sido protagonistas de uma das maiores desfeitas da história de Boipéba. O Guido começou por nos apresentar a sua mulher e depois, um a um, os seus seis filhos, com idades entre os vinte e um e os seis anos. Levou-nos depois à cozinha, para nos mostrar a arca frigorífica que era nova e estava cheia de cerveja. Foi a esvaziá-la lentamente que passamos o serão, entre mais histórias e as gargalhadas contagiantes das crianças que não disfarçavam a excitação de ter convidados em casa. A certa altura o Guido levantou-se e disse: “Zé, você desculpe mas eu tenho de sair. O meu filho está gostando de uma menina e eu combinei ir falar com os pais dela para ver se eles podem namorar. A gente se vê lá na Carambola”.
A Carambola era aquilo a que os habitantes da aldeia chamavam “o lugar do agito”. Uma cerca de madeira separava a rua de um dance-floor em terra batida, com algumas mesas de plástico à volta. Rapazes de tronco-nu disputavam a atenção das raparigas mais bonitas da aldeia e convidavam-nas para dançar. Corpos suados, pó, música alta e muita cachaça, muniam o lugar de uma tensão muito própria. Éramos os únicos estranhos ali. Observávamos e éramos observados, numa espécie de estudo antropológico mútuo. A certa altura levantou-se uma pequena zaragata, certamente algum despique com base na legitimidade do direito aos braços de uma das raparigas na próxima dança, mas, precisamente nesse momento, deu-se uma conveniente aparição – o Guido tinha voltado e estava tudo controlado.
- “E então Guido, eles deixaram o seu filho namorar?”, perguntei eu.
- “Deixaram sim, mas por agora só na porta de casa”.
Passaram mais de quatro anos e, embora não saiba se aquela foi a última vez que vi o Guido e a sua família, foi certamente a última vez que vi o Guido tal como o conheci.
Sei que a sua amendoeira na praia da Coeira se transformou num ponto de atracção turística onde param os barcos provenientes do Morro de São Paulo e que, entretanto, os seus bancos de madeira se transformaram misteriosamente em plástico, multiplicando-se a cada ano que passa, e que do seu repertório de histórias passaram a constar um sem número de celebridades brasileiras que fizeram questão de provar os seus petiscos, atraindo canais de televisão, jornais e revistas que o tornaram numa espécie de superstar em Boipéba - “L’enfer c’est les autres”, não é assim?.
Fico com a recordação daquele homem engraçado, trabalhador e humilde, do seu riso franco, e da sua simpática família; daquele fantástico lugar na Bahia, e de tudo aquilo que representou nas nossas vidas em contraste com o rame-rame diário a que nos rendemos (ou vendemos). É como nos disse Vinícius no seu Samba da Benção: “...feito essa gente que anda por aí brincando com a vida. Cuidado companheiro, a vida é para valer, e não se engane não, tem uma só. Duas, mesmo que é bom, ninguém vai-me dizer que tem sem provar muito bem provado, com certidão passada em cartório do Céu e assinado em baixo: DEUS..., e com firma reconhecida.”


José Miguel de Abreu.

Publicado no Semanário Económico - Agosto de 2008.