sexta-feira, 20 de março de 2009

L'acquila pescatrice.


O som tem mais influência no apelo à estética do que à priori podemos supor. Há uns tempos entrei na cozinha de casa dos meus pais para encontrar uma rapariga relativamente rechonchuda, que eu nunca vira até então, a beber um copo de leite. Quando lhe apareci de repente não se atrapalhou por não me conhecer e, com uns bigodes brancos, soltou um alegre “Buon Giorno!”. “Bom dia”, disse-lhe eu, ao mesmo tempo que tentava descortinar a origem de tão alegre criatura. Qualquer coisa como “Sono amica di João” (e o João é um dos meus irmãos) esclareceu-me até certo ponto. Vim a saber mais tarde naquele dia que se tratava de uma das suas paixonetas que, neste caso, estava associada à fonética. Passo a explicar: No dia em que o meu irmão conheceu a rapariga ela contou-lhe uma história sobre uma espécie de águia, a águia-pescadora ou Pandion Haliaetus, conhecida lá para as bandas de onde ela vinha como “L’aquila pescatrice”. Foi exactamente pela maneira como ela dizia “L’aquila pescatrice” que ele se apaixonou. A língua italiana tem este encanto. Conhecendo o meu irmão como conheço, não o imagino a olhar duas vezes para uma bonita portuguesa com sotaque de Guimarães, por muito erudita em espécies em extinção que ela fosse, simplesmente pela forma como diria águia-pescadora. Poderia encontrar outras razões, mas não essas. Noutra perspectiva, que não se prende tanto com a fonética mas mais com o som propriamente dito, há no nosso dia-a-dia uma série de sentimentos que são enlevados ou retraídos pela música, pelos sons da natureza, etc. Durante um período de tempo em que dei aulas, gostava de fazer um exercício com os meus alunos. Colocava num auditório semi-obscuro um excerto de um filme com cerca de 10 minutos e uma cena visualmente neutra em termos emocionais, com a “minha” banda sonora adaptada que ia alternando. Umas vezes o Adiagietto da 5ª Sinfonia de Mahler, o do Karajan com a Filarmónica de Berlim, outras vezes um registo intermédio, como o Summertime de Gershwin, pelo Ray Brown Trio com Gene Harris ao piano, ou, noutro extremo, músicas de bandas como os Siouxsie and the Banshees, Rage Against the Machine, The Strokes, entre outros. Pedia-lhes então que escrevessem sobre aquilo que sentiam em função das imagens e da música. Com aquele exercício não queria provar absolutamente nada para além da influência óbvia que o som tem na narrativa e no pathos, mas os sentimentos descritos foram sempre absolutamente surpreendentes, por aquilo que representavam em relação a cada pessoa. Se eu, naquele dia em casa dos meus pais, tivesse ouvido da boca daquela rapariga um “Oi!”, um “Good morning!”, ou um “Bonjour!”, o efeito teria sido certamente diferente daquele que me provocou o “Buon Giorno!”, assim como teria sido diferente a imagem que eu reteria da míúda com bigodes de leite, até porque também são totalmente diferentes uns bigodes de leite de uma brasileira, de uma inglesa ou de uma francesa. Mas isso é outra conversa. Em relação à fonética, queria apenas acrescentar que tenho visto marcas portuguesas com pretensões de internacionalização com nomes simplesmente indizíveis noutras línguas, e que esse facto pode, por si só, ter um peso considerável no entendimento ou na aproximação do público a um determinado produto. Há “palavras” que usamos que representam apenas “sons” estranhos noutras línguas, e que, no limite, querem dizer outras coisas. Também o som, num spot de televisão, mas também, por exemplo, num restaurante, pode ser determinante na experiência que temos, ainda que por vezes o seja de uma forma subliminar. Não é raro não nos apercebermos de um ruído que nos incomoda, até ao momento em que ele deixa de existir.

JMA
Publicado em 2008 no Semanário Económico.

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