segunda-feira, 2 de março de 2009

Boipéba (BA)



Antes de viajar para o Brasil fui a casa de um amigo meu que viveu lá muitos anos, para recolher algumas informações. A certa altura, ele pegou numa fotografia onde se via uma praia com um pequeno conjunto de cabanas de madeira com telhado de colmo - “Tirei esta fotografia por causa deste número de telefone, uma vez que estava a passar ali perto de barco. É uma ilha no sul da Bahia; chama-se Boipéba”, disse ele. De facto, se olhássemos com atenção, podíamos ver uma placa onde se lia “Vila Sereia”, com um número de telefone por baixo, que anotei num papel.
Passadas duas ou três semanas estava em Itacaré, que fica alguns quilómetros a sul de Boipéba, e, antes de prosseguir viagem, liguei para o tal número para ver se conseguia fazer uma reserva para uns dias. Do outro lado atendeu-me uma senhora que me disse que lamentava mas que não tinha disponibilidade para essas datas; que só tinha quatro cabanas, e que o melhor seria ficarmos uma primeira noite no Morro de São Paulo, que é a ilha a Norte que fica a três horas de viagem, e depois dirigir-me lá no dia seguinte, que podia ser que ela me arranjasse qualquer coisa. Assim foi.
O Morro de São Paulo só não me desiludiu porque já ia preparado para o que ia encontrar. Depois de ter passado as três semanas anteriores em lugares praticamente virgens, longe de turistas e de tudo aquilo a que chamamos “rebuliço”, vi-me rodeado de uma confusão total e absoluta - berimbau com batida techno, vendedores de tudo e mais alguma coisa, do côco à coca, passando pelas cangas, colares, pulseiras, DVD’s pirata, etc., numa prova viva e efervescente de que não há mesmo paraíso que resista à acção devastadora dos números por trás do turismo e daquilo a que chamamos Civilização.
No dia seguinte, passava pouco das sete da manhã quando nos sentamos no tractor que nos ia levar a Boipéba. No fim do percurso que era possível fazer por terra, apanhamos boleia de um barco de pescadores que atravessou um pequeno rio e nos deixou no nosso destino.
Foi quase imediatamente que identificámos a placa da fotografia com o “nosso” número. Como não vimos ninguém, levantamos a cancela de madeira que separava a praia do jardim e entrámos. Não passou muito tempo até vir ter connosco um senhor de uma certa idade a quem explicamos porque e como ali tínhamos ido parar. Era o jardineiro e disse-nos que achava muito estranho a Dona Chris ter-nos dito que não havia cabanas livres, porque há mais de uma semana que não havia hóspedes na Vila Sereia. Levou-nos então até à porta de uma cabana que era maior do que as outras, e pediu-nos que esperássemos.
Foi sem grande alarido e com um ar sério que a Dona Chris nos veio receber. Entre outras coisas disse-nos que era publicitária em São Paulo, mas que se fartara daquela vida; desistira de ser rica, e instalara-se ali. Depois de conversarmos alguns minutos, disse que tinha muito gosto em que ficássemos lá, explicando-nos que, quando as pessoas lhe ligavam e não as conhecia, dizia que não havia vagas. Prezava muito o seu espaço e gostava de ver a cara das pessoas antes de as instalar numa das cabanas do seu jardim. Antes de nos deixar disse-nos para, na manhã seguinte, quando acordássemos e quiséssemos comer, abrirmos a portada da janela do nosso quarto que, passado um bocado, alguém nos levaria o “café-da-manhã”.

Não passaram mais de vinte minutos desde o momento em que abrimos a portada do nosso quarto até aparecerem na nossa varanda duas baianas com um grande cesto que pousaram em cima de uma cadeira. Lá de dentro foram tirando pão, queijo, doce, fruta, sumos naturais, e um bolo acabado de fazer que, dispostos em cima da mesa, formavam um belo quadro de cores vivas. O tempo estagnara ali para nós.
Com o passar dos dias fomos deixando para trás todas as preocupações, necessidades, complexos e vícios citadinos, até atingirmos um estado de alma que remetia para as palavras de Calazans Neto sobre a passagem de Vinícius de Moraes pela Bahia – “Não queríamos mudar nada. Queríamos aceitar a vida como ela era: gostosa, morna, engraçada. (...) Era do nascer do sol ao morrer do sol, às vezes sem fazer absolutamente nada. Chega um tempo em que você descobre que o bom é não fazer nada. É ver o dia passar. No dia que você consegue como nós conseguimos, eu e Vinícius, conversando sobre amenidades, ver o dia passar, da manhã até o sol se por, é quando você realmente está tranquilo, onde você não é neurótico, onde as coisas estão muito mais presas no seu íntimo.”
Era então assim, sem querermos mudar nada, que todos os dias andávamos cerca de quarenta minutos por pequenos trilhos até à Praia da Coeira onde, desde muito cedo, o Guido, um homem de cinquenta e tal anos, apanhava lenha para fazer a fogueira onde cozia as lagostas que servia a quem ali passava, por 10 R$ a dose.
Há mais de 18 anos que o Guido ocupava diariamente a mesma amendoeira, onde amarrava uns pequenos bancos de madeira e o seu burro. Mais do que conversador, este homem era um verdadeiro contador de histórias, mas de histórias absolutamente mirabolantes, de bolas de fogo que à noite rasgavam os céus investindo contra os pescadores nos seus barcos; de santos de madeira que desapareciam de uma igreja para, passados alguns dias, irem aparecer noutra; de pais-de-santo, mães-de-santo, orixás e magia negra que, por inverosímeis que nos parecessem, realçavam a aura do lugar.
Um dia, o senhor Guido veio ter comigo e disse: “Zé, quer vir em minha casa hoje à noite?”. “Vou Guido, onde é?”, disse eu. “Você sobe o morro lá junto de Boipéba velha, e pergunta onde fica a minha casa, que todo o mundo sabe. Vá lá, conhecer a minha mulher e os meus filhos”.
Confesso que, naquela noite, depois de um dia de praia e de um jantar como aquele que acabara de ter, tudo o que me apetecia era fazer como o santo de madeira das histórias do Guido e, num estalar de dedos, desaparecer do restaurante onde estávamos e voltar a aparecer na minha cama, mas lá nos resolvemos a subir o morro e a ir procurar a casa do nosso amigo.

Quando o Guido nos abriu a porta de sua casa tínhamos, em formação quase militar, toda a sua família à nossa espera. Imediatamente percebemos que, se nos tivéssemos rendido à preguiça pós-jantar, teríamos sido protagonistas de uma das maiores desfeitas da história de Boipéba. O Guido começou por nos apresentar a sua mulher e depois, um a um, os seus seis filhos, com idades entre os vinte e um e os seis anos. Levou-nos depois à cozinha, para nos mostrar a arca frigorífica que era nova e estava cheia de cerveja. Foi a esvaziá-la lentamente que passamos o serão, entre mais histórias e as gargalhadas contagiantes das crianças que não disfarçavam a excitação de ter convidados em casa. A certa altura o Guido levantou-se e disse: “Zé, você desculpe mas eu tenho de sair. O meu filho está gostando de uma menina e eu combinei ir falar com os pais dela para ver se eles podem namorar. A gente se vê lá na Carambola”.
A Carambola era aquilo a que os habitantes da aldeia chamavam “o lugar do agito”. Uma cerca de madeira separava a rua de um dance-floor em terra batida, com algumas mesas de plástico à volta. Rapazes de tronco-nu disputavam a atenção das raparigas mais bonitas da aldeia e convidavam-nas para dançar. Corpos suados, pó, música alta e muita cachaça, muniam o lugar de uma tensão muito própria. Éramos os únicos estranhos ali. Observávamos e éramos observados, numa espécie de estudo antropológico mútuo. A certa altura levantou-se uma pequena zaragata, certamente algum despique com base na legitimidade do direito aos braços de uma das raparigas na próxima dança, mas, precisamente nesse momento, deu-se uma conveniente aparição – o Guido tinha voltado e estava tudo controlado.
- “E então Guido, eles deixaram o seu filho namorar?”, perguntei eu.
- “Deixaram sim, mas por agora só na porta de casa”.
Passaram mais de quatro anos e, embora não saiba se aquela foi a última vez que vi o Guido e a sua família, foi certamente a última vez que vi o Guido tal como o conheci.
Sei que a sua amendoeira na praia da Coeira se transformou num ponto de atracção turística onde param os barcos provenientes do Morro de São Paulo e que, entretanto, os seus bancos de madeira se transformaram misteriosamente em plástico, multiplicando-se a cada ano que passa, e que do seu repertório de histórias passaram a constar um sem número de celebridades brasileiras que fizeram questão de provar os seus petiscos, atraindo canais de televisão, jornais e revistas que o tornaram numa espécie de superstar em Boipéba - “L’enfer c’est les autres”, não é assim?.
Fico com a recordação daquele homem engraçado, trabalhador e humilde, do seu riso franco, e da sua simpática família; daquele fantástico lugar na Bahia, e de tudo aquilo que representou nas nossas vidas em contraste com o rame-rame diário a que nos rendemos (ou vendemos). É como nos disse Vinícius no seu Samba da Benção: “...feito essa gente que anda por aí brincando com a vida. Cuidado companheiro, a vida é para valer, e não se engane não, tem uma só. Duas, mesmo que é bom, ninguém vai-me dizer que tem sem provar muito bem provado, com certidão passada em cartório do Céu e assinado em baixo: DEUS..., e com firma reconhecida.”


José Miguel de Abreu.

Publicado no Semanário Económico - Agosto de 2008.

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